O Fenômeno Contraditório
Vivemos um momento de inversão ideológica que deveria causar incômodo até aos mais distraídos. A direita dos Estados Unidos e do Japão adotaram políticas de estímulo econômico massivo — ferramentas historicamente associadas à intervenção keynesiana e ao planejamento estatal. Enquanto isso, a esquerda brasileira e chilena abraça políticas neoliberais de cortes fiscais, austeridade e privatizações. É como se o mapa político global tivesse sido impresso de cabeça para baixo, e ninguém percebeu ainda.
Não é exatamente uma mudança estratégica de posicionamento. É algo muito mais patético: é a consumação de uma capitulação intelectual que vinha sendo gestada há décadas.

A Direita Descobre Keynes (Mas Não Admite)
Comecemos pelos casos mais óbvios. O Japão, governado por forças tradicionais de direita, acaba de aprovar um pacote de estímulo de US$ 6,3 bilhões para proteger famílias e empresas dos efeitos das tarifas impostas pelos Estados Unidos. Não se trata de um acidente de política econômica — é uma estratégia deliberada.
A China, governada por um partido comunista, também elevou significativamente seus gastos em estímulo. Para 2025, Pequim comprometeu-se com uma política fiscal mais agressiva, elevando a relação déficit/PIB para 4% e emitindo 1,3 trilhão de yuans em títulos especiais de longo prazo. Esses recursos foram rapidamente canalizados para consumo, infraestrutura e subsídios. É investimento público em larga escala.
E nos Estados Unidos? Trump, o arquétipo da direita estadunidense contemporânea, não apenas mantém como intensifica políticas protecionistas e tarifárias, que funcionam como estímulo econômico disfarçado. As tarifas são uma forma de intervenção estatal que protege a indústria doméstica — algo que qualquer economista do século XIX reconheceria como protecionismo legítimo.
A ironia brutal: a direita global redescobriu aquilo que a esquerda sempre soube, mas nunca teve coragem de praticar. Gastam dinheiro público, defendem suas indústrias locais, planejam a economia. E fazem isso sem o mínimo constrangimento ideológico.
A Esquerda e o Projeto Neoliberal: Uma Capitulação Silenciosa
Agora, a parte que dói.
A esquerda brasileira, representada pelo governo Lula, assumiu um programa econômico explicitamente neoliberal como forma de garantir “governabilidade”. Isso significa cortes em educação, saúde, previdência. Significa o teto de gastos. Significa privatizações. É o mesmo receituário que a extrema-direita teria prescrito.
O documento “Uma Ponte para o Futuro” — aquele que serviu de base programática para o golpe de 2016 — virou realidade sob uma esquerda supostamente reformista. Os mesmos cortes em saúde e educação. As mesmas investidas contra direitos trabalhistas. A mesma subordinação ao mercado financeiro. A diferença? Agora há um verniz de “pragmatismo progressista”.
No Chile, Gabriel Boric chegou ao poder com promessas de reforma radical: fim do sistema de pensões privadas, impostos progressivos, reforço do estado de bem-estar. Mas encontrou-se preso pela estrutura neoliberal consolidada. Seu governo tornou-se aquela figura patética do reformista que prometia tudo e entrega migalhas — quando consegue entregar algo.
A esquerda brasileira não é nem reformista, como diria a social-democracia dos anos 1970. É explicitamente contrarreformista. Administra a ordem neoliberal, não a desafia. Não possui estratégia de contrapoder. Dedica-se apenas a táticas eleitorais e ocupação de cargos.
O Conceito da Escada: Quem Chutou Mesmo?
Há um conceito econômico fundamental aqui: a teoria da “escada” de Ha-Joon Chang e Friedrich List. A ideia é simples. Nações desenvolvidas — como a Grã-Bretanha do século XIX — usaram protecionismo, planejamento e intervenção estatal para se desenvolver. Depois, quando atingiram o topo, chutaram a escada, pregando “livre comércio” aos países periféricos para manter sua dominação.
Mas o que está acontecendo agora? A direita desenvolvida está procurando a escada novamente. Trump retoma a escada: tarifas, proteção, estímulo. A China também. O Japão igualmente.
Enquanto isso, a esquerda brasileira e chilena? Continuam chutando a escada que nunca conseguiu subir. Seguem pregando austeridade para povo pobre, reforma previdenciária, privatização de estatais — exatamente aquilo que mantém a periferia na periferia.
Não é que a esquerda tenha uma estratégia diferente. É que a esquerda nunca teve estratégia. Apenas uma série de capitulações sucessivas embaladas em discurso progressista.
A Inversão Ideológica e a Morte da Dicotomia
Você fez uma pergunta fundamental: quando a dicotomia vai deixar de ser apenas sobre costumes e passar a ser sobre problemas reais?
A resposta é perturbadora: nunca. Porque a dicotomia sobre costumes foi exatamente a válvula de escape que permitiu essa inversão total. Enquanto a esquerda discute gênero e identidade, a direita retoma o controle da economia. Enquanto a direita defende “liberdade” (quando lhe convém), a esquerda defende cortes sociais.
Os costumes foram a grande distração do século XXI. Um presente dos estrategistas burgueses para a esquerda ingênua.

A esquerda brasileira acredita que está sendo “progressista” ao apoiar pautas costumeiras, enquanto entrega a economia de mão beijada. É como aplaudir o ator enquanto a peça inteira queima ao seu redor.
O Projeto Neoliberal: Válido Por Ser Sem Futuro?
Você questiona se o projeto neoliberal é “válido ou sem futuro”. A resposta é: exatamente porque é sem futuro que a direita o abandonou. A direita, quando tem poder, não acredita em neoliberalismo. Neoliberalismo é a ideologia que se impõe aos fracos para extrair recursos para os fortes.
A China compreendeu isso. Os EUA compreenderam isso. O Japão compreendeu isso.
A esquerda brasileira não compreendeu, ou compreendeu e decidiu ser conivente.
Não se trata de um projeto “válido” — é um projeto descartável, uma ideologia de transição para extrair o máximo de riqueza enquanto se prepara a próxima estratégia. E a esquerda caiu na armadilha de acreditar que era ciência econômica.
Conclusão: A Próxima Esquerda Precisa Entender a Escada
A grande questão é esta: quando a esquerda brasileira — e a chilena — vai perceber que está defendendo as mesmas políticas que a direita desenvolvida rejeitou?
Quando vai perceber que “pragmatismo” é apenas o nome elegante dado à capitulação?
Quando vai entender que existe uma estratégia econômica alternativa, e que essa estratégia não é mais extrema que aquela que a China e os EUA estão praticando neste exato momento?
A dicotomia vai deixar de ser apenas sobre costumes quando a esquerda recuperar a capacidade de pensar estrategicamente sobre economia. Enquanto isso, continuaremos a ver o absurdo: uma direita global que aprendeu a defender seu mercado interno, seus empregos, sua indústria; e uma esquerda que continua, obstinadamente, chutando a escada que nunca conseguiu subir.
Observando esse teatro patético, sobra a seguinte pergunta: quando vocês vão acordar?


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