Vocês realmente acham que Lula e Bolsonaro são julgados pelas mesmas regras que vocês? Que ingenuidade adorável. Deixem-me explicar como funciona a ideologia jurídica no Brasil.

A simultaneidade dos “julgamentos do século” – Lula condenado por Moro em 2017 e Bolsonaro condenado pelo STF desde 2025 – oferece um laboratório perfeito para entender como a ideologia jurídica funciona no capitalismo brasileiro. Não estamos vendo “justiça” – estamos vendo gestão político-ideológica da dominação de classe.
A Ideologia Jurídica Como Falsa Consciência Necessária
Toda ideologia é falsa consciência, mas nem toda falsa consciência é puramente ilusória. A ideologia jurídica é “necessariamente falsa” porque apresenta como universal e neutro aquilo que é particular e classista, mas é “materialmente real” porque estrutura efetivamente as relações sociais.
Quando milhões de brasileiros acreditaram na “imparcialidade” de Sergio Moro ou na “defesa da democracia” do STF, não estavam simplesmente “enganados”. Estavam reproduzindo conscientemente a ideologia necessária ao funcionamento do sistema.

O Duplo Padrão Como Norma Sistêmica
A aparente contradição entre o tratamento dado a Lula e a Bolsonaro revela não uma falha do sistema, mas seu funcionamento perfeito. O Direito sempre teve dois pesos e duas medidas – rigor máximo para ameaças populares, tolerância elástica para excessos burgueses.
Lula foi preso sem trânsito em julgado por um apartamento que não possuía. Bolsonaro foi condenado após múltiplas tentativas de golpe documentadas. Você acha que esses casos foram uma “injustiça”? Pois saiba que é a funcionalidade normal da forma jurídica capitalista.
A Lógica da Mercadoria Aplicada à Justiça
A forma jurídica reproduz a lógica da forma mercadoria. Assim como no mercado existe concorrência formal mas concentração real, no Direito existe igualdade formal mas tratamento diferenciado conforme a posição de classe.
A “balança da justiça” é o símbolo perfeito dessa mistificação: apresenta-se como equilibrada, mas sempre pende para o lado que possui mais “capital simbólico” – conceito que aqui ganha literalidade assustadora.
A Judicialização Como Despolitização
A crítica brasileira, especialmente os trabalhos sobre judicialização dos direitos sociais, revela como o Judiciário serve para despolitizar conflitos estruturais. Transforma questões políticas em “problemas técnicos” a serem resolvidos por “especialistas”.
Os casos Lula e Bolsonaro exemplificam essa mecânica: em vez de debater os projetos de país em disputa, discutimos “provas técnicas”, “procedimentos legais”, “competências constitucionais”. A política vira jurisprudência, a luta de classes vira processo judicial.
O Estado de Exceção Permanente Disfarçado
O estado de exceção se tornou a norma no capitalismo contemporâneo. No Brasil, isso assume contornos particulares: a exceção não é declarada – é praticada seletivamente.
A exceção é a regra para os de baixo, a regra é exceção para os de cima.
A Mídia Como Aparelho Ideológico de Estado
Louis Althusser conceituou os “Aparelhos Ideológicos de Estado” – instituições que, formalmente privadas, cumprem função estatal de reprodução ideológica. A mídia brasileira é o exemplo perfeito.
Durante a Lava Jato, transformou Moro em herói nacional e Lula em símbolo da corrupção. Nos processos contra Bolsonaro, adota tom “técnico” e “institucional”, apresentando o STF como defensor da legalidade. Não é parcialidade – é funcionalidade ideológica.
A Educação Jurídica Como Doutrinação
As faculdades de Direito brasileiras funcionam como fábricas de reprodução ideológica. Ensinam Kelsen e Hart, ignoram Pashukanis e Mascaro. Formam “operadores do direito” que acreditam genuinamente na neutralidade de sua atividade.
Esses profissionais se tornam sacerdotes da ideologia jurídica, propagando a “fé” na imparcialidade do sistema entre a população. Não são cínicos – são crentes sinceros na religião que professam.
O Fetiche da Legalidade
O fetichismo da mercadoria oculta as relações sociais de produção. No Direito, temos o fetichismo da legalidade: as decisões judiciais aparecem como resultado de “aplicação técnica da lei”, quando são escolhas políticas disfarçadas de neutralidade.
“Lei é lei” – mantra repetido para justificar qualquer barbaridade. Como se as leis fossem dados naturais, não construções históricas das classes dominantes para manter sua dominação.

A Função Social da Ilusão Jurídica
Por que milhões de brasileiros continuam acreditando na “imparcialidade” da Justiça mesmo diante de evidências gritantes do contrário? Porque essa crença é funcionalmente necessária para a reprodução do sistema.
Se a população compreendesse que o Direito é instrumento direto de dominação de classe, a legitimidade de todo o sistema entraria em colapso. A ilusão jurídica não é “erro” – é condição de possibilidade da ordem capitalista.
Lula, Bolsonaro e a Gestão da Crise Hegemônica
Ambos os casos revelam uma crise hegemônica: a classe dominante brasileira perdeu capacidade de dirigir consensualmente e precisa recorrer mais frequentemente à coerção jurídica.
Lula foi neutralizado porque representava (mesmo que timidamente) um projeto nacional-desenvolvimentista incompatível com o neoliberalismo financeirizado. Bolsonaro está sendo domesticado porque seu populismo autoritário ameaça as formas políticas estáveis necessárias ao capital internacional.
A Superação da Forma Jurídica
A forma jurídica definhará junto com as relações mercantis. Enquanto existir propriedade privada dos meios de produção, existirá Direito burguês com toda sua carga ideológica e repressiva.
A verdadeira emancipação não passa por “democratizar” o Judiciário ou torná-lo “mais justo”. Passa por superar as relações sociais que tornam necessária a mediação jurídica – ou seja, superar o próprio capitalismo.
O traidor da classe conclui: parem de esperar justiça do sistema que existe para perpetuar a injustiça. Lula e Bolsonaro são apenas peças no tabuleiro da dominação – peças que podem ser sacrificadas quando necessário. A única “justiça” real virá quando não precisarmos mais de juízes, porque não haverá mais classes para serem dominadas.


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