O manual da dominação econômica
Por que será que toda vez que o trabalhador brasileiro acha que vai respirar, aparece um “tecnocrata sério” explicando que os juros precisam subir “para combater a inflação”? Por que toda reforma estrutural promete “modernizar” a economia mas sempre termina com o povo pagando a conta? Não é coincidência, queridos. É projeto. E vou explicar como essa engenharia de transferência de renda funciona na prática.
O aumento do custo de vida no Brasil não é efeito do capitalismo selvagem – é sua principal funcionalidade. Cumpre duas funções estratégicas para manter a elite no comando: transfere renda via juros altos e disciplina o trabalhador através do medo permanente do desemprego e da pobreza.
A escola de Chicago chegou aos trópicos
Vamos começar pelo básico: o arrocho salarial da ditadura militar (1964-1985). Aqueles generais não acordaram um dia inspirados para apertar o cinto dos pobres. Havia um roteiro, amigos. Roberto Campos e Octávio Bulhões, a dupla do arrocho, seguiram à risca as receitas do Fundo Monetário Internacional [1].
O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) mudou a fórmula de reajuste salarial para “combater a inflação”. Na prática, os salários passaram a ser reajustados abaixo da inflação real, provocando perda do poder de compra. Entre 1964 e 1985, o salário mínimo perdeu mais de 50% do seu valor real. A equipe econômica da ditadura descobriu que “estabilizar a economia” era sinônimo de quebrar o trabalhador [2].
Mas atenção para o detalhe mais sórdido: em 1966, a criação do FGTS acabou com a estabilidade decenal da CLT. Antes, quem completasse 10 anos na mesma empresa só podia ser demitido por justa causa. Era uma proteção real contra o terror da demissão arbitrária. O FGTS “facilitou” as demissões – leia-se: deu aos patrões carta branca para usar a rotatividade como instrumento de controle salarial. Não à toa, o Brasil ostenta hoje uma das maiores taxas de rotatividade do mundo [3].
PEC do Teto: a austeridade como religião
Saltamos para 2016. O golpe parlamentar de Michel Temer precisava de uma âncora “técnica” para justificar o desmonte do Estado. Surge a PEC 241 (depois 95), carinhosamente conhecida como PEC do Teto de Gastos [4].
A emenda constitucional congelou os gastos públicos por 20 anos, corrigidos apenas pela inflação do ano anterior. Na prática, isso significou menos investimento em saúde, educação, infraestrutura – exatamente as áreas que beneficiam o trabalhador. Enquanto isso, os gastos com juros da dívida pública ficaram de fora do teto. Coincidência? Claro que não [5].
O DIEESE calculou que a PEC teria impacto direto no poder aquisitivo dos salários, já que os reajustes dos servidores públicos deixariam de acompanhar o crescimento da economia. Para os trabalhadores da iniciativa privada, a mudança na metodologia de reajuste do salário mínimo comprometeria os ganhos reais de quem tem esse valor como referência [6].

Selic: a máquina de fazer ricos
Chegamos ao coração da máquina de transferência de renda: a taxa Selic. O Brasil pratica sistematicamente os juros reais mais altos do mundo. Em 2025, a Selic chegou a 15%, com projeção de chegar a 12% até o final do ano. Para comparar: enquanto o FED americano trabalha com 4,5%, nosso Banco Central acha 15% “necessário para convergir a inflação à meta” [7].
Cada ponto percentual da Selic custa mais de R$ 50 bilhões anuais em juros. Em 2024, o pagamento de juros consumiu cerca de R$ 1 trilhão do orçamento público – 32% superior ao ano anterior. Esse dinheiro vai direto para os bolsos dos rentistas: bancos, fundos de investimento e os famosos 0,1% mais ricos [8].
A lógica é cristalina: o Estado brasileiro funciona como Robin Hood às avessas, tirando dinheiro dos pobres (via impostos e subinvestimento público) para entregar aos ricos (via juros da dívida). O economista Bruno Mäder Lins resume: “Estado, empresários e pessoas comuns transferem parte dos seus rendimentos diretamente para essa coalizão financeiro-rentista” [9].
Dividendos: quando a produtividade não é sua
Enquanto você escolhe entre pagar o aluguel ou comprar carne, o mercado financeiro celebra. Entre 2020 e 2024, as empresas do Ibovespa distribuíram R$ 1,3 trilhão em dividendos. A Petrobras sozinha distribuiu R$ 472,85 bilhões; a Vale, R$ 174,78 bilhões [10].
Deste trilhão de reais, 47% foi apropriado por cerca de 160 mil pessoas – os 0,1% mais ricos do país. Essas pessoas concentraram 12,5% da renda nacional disponível das famílias em 2023. E o mais revoltante: esses dividendos são isentos de imposto de renda, enquanto quem ganha salário paga até 27,5% de alíquota [11].
É o “bolsa-rentismo” na veia: um programa de transferência de renda que suga recursos de quem trabalha para engordar quem já tem capital. E funciona 24 horas por dia, automaticamente, sem precisar de inscrição no CadÚnico.
A disciplina via desespero
Mas o sistema não funciona apenas transferindo renda. Ele também disciplina o trabalhador pelo medo. Juros altos significam crédito caro, desemprego alto e investimento produtivo baixo. Com 78,5% das famílias endividadas e 28,8% inadimplentes, o trabalhador não tem como fazer greve de verdade – precisa aceitar qualquer emprego, qualquer salário, qualquer condição [12].
A alta rotatividade no mercado de trabalho funciona como terrorismo laboral permanente. Ninguém se sente seguro para reivindicar melhores condições. Afinal, tem sempre uma fila de desempregados dispostos a aceitar menos. O FGTS, que deveria proteger o trabalhador, na prática facilitou essa lógica de “usa e joga fora” [13].
O script se repete
O padrão se repete desde a ditadura: sempre que a economia cresce e o trabalhador ensaia uma melhora de vida, aparece uma “crise” que exige “ajustes”. Os ajustes sempre recaem sobre os mesmos: corte de gasto social, arrocho salarial, juros altos para “atrair investimento estrangeiro”.
Enquanto isso, os lucros bancários batem recordes, os dividendos gordos mantêm os acionistas em cruzeiros e a concentração de renda aumenta. Não é incompetência da política econômica – é sua missão cumprida.
O economista João Sicsú resume bem: “juros altos representam maior transferência de renda de pobres para os ricos, maior concentração da renda”. E complementa: “Nenhum órgão do governo deve ficar ao sabor das pressões do mercado financeiro e nem dos possuidores dos títulos da dívida pública” [14].
Então, da próxima vez que ouvirem um tecnocrata explicando que “não há alternativa” para os juros altos, que a “responsabilidade fiscal” exige cortes sociais ou que o trabalhador precisa “se adaptar aos novos tempos”, lembrem-se: não é economia, é política. Não é técnica, é ideologia. E não é acidente – é projeto.
O Brasil dos rentistas não aconteceu por acaso. Foi construído tijolo por tijolo, decreto por decreto, PEC por PEC. E pode ser desconstruído da mesma forma, se a classe trabalhadora acordar para a manipulação e resolver não aceitar mais ser massa de manobra dessa elite que vive de dividendos enquanto o povo vive de dívidas.
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